Por Carlos Alexandre Klomfahs*
Ao comparar McNamara e Putin, a reflexão mais alarmante sobre a postura americana de guerra permanente com mão-de-obra e em solo alheios, é a da impossibilidade de mudança da natureza humana, ou seja, a permanente realidade da guerra.
Preliminarmente, é necessário recordar, pela historiografia militar, “quem” é a Federação Russa.
Na Grande Guerra Patriótica (22 de junho de 1941 a 7 de maio de 1945) reverteu uma derrota tática na maior operação militar da história: Barba Ruiva, levada a cabo por 152 divisões totalizando mais de três milhões de soldados, perfazendo quase 77% do efetivo do Exército alemão. Em resumo, foi a Frente Oriental que realmente poupou o mundo da vitória nazista, ao preço da vida de 27 milhões de militares e civis soviéticos.
Recuando no tempo, a Rússia foi ludibriada pela Inglaterra e França quando estas visaram reforçar o poder do Império Turco-Otomano na Guerra da Criméia (1853-1856), contra a eventual supremacia russa no acesso ao estreito de Bósforo e aos Dardanelos, bem como o aumento de sua influência no Mar Negro e nos Balcãs.
Ao longo da história, a Rússia travou batalhas pelo acesso aos mares quentes, como na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) no acesso ao Oceano Pacífico, precedida pela aliança de assistência militar recíproca Anglo-Japonesa de 1902; assim como as violações por Adolf Hitler ao pacto de não agressão Molotov-Ribbentrop, levado à efeito em 23 de agosto de 1939.
Ou seja, ao longo da história, a Rússia tem larga experiência em firmar acordos com países que adotam narrativas diferentes de suas agendas, países que sempre semeiam a desconfiança, a discórdia e que não cumprem acordos internacionais firmados.
A Rússia é um país cujos erros históricos e militares não se repetirão, pois foram absorvidos pelo mecanismo ordeiro da curva de aprendizado; primeiro, pelo seu poderio nuclear notório e incontestável; e segundo, pelo poderio material e humano convencional e apoios interno e internacional, aliados à uma economia pujante com estratégicas alianças extrarregionais, nomeadamente os BRICS e cujas ações no campo militar buscam sempre, primeiro, a resolução via diplomacia e fundamentada no direito internacional, e, segundo, a submissão dos fatos ao Conselho de Segurança da ONU.
Pois bem.
No início da operação especial na Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, autorizada pelo Conselho da Federação (equivalente ao nosso Senado Federal com algumas diferenças) o presidente Vladmir Putin já havia elencado os principais objetivos da operação para manutenção da segurança da Federação Russa, conforme sua competência constitucional, prevista no art. 80, capítulo 4, da Constituição Russa de 1993, de bem representar o país nas relações internacionais, e seriam:
1) Desnazificar;
2) Desmilitarizar.
Dentre outros motivos, a intenção de instalar sistemas antimísseis na Ucrânia, a opressão, violência e morte de russos étnicos, e a descoberta de laboratórios químicos e biológicos de programa militar estrangeiro, depois assumido pelo Pentágono, que em conjunto ratificaram os elementos decisórios.
Prosseguiu o presidente Putin afirmando que há 30 anos a Rússia tenta, debalde, negociar com países ocidentais as “cinco fases” de expansão gradativa da OTAN no leste Europeu, sem, contudo, obter uma resposta ou ação prática.
Recordou ainda as ações americanas no Iraque em 2003, com uso ilegítimo da força pelos países da OTAN, sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, bem como na Síria e a Líbia, que endossam o modus operandi de inobservância do direito internacional.
Cumpriu o presidente Putin o previsto no artigo 33, da Carta da ONU, que prevê que os Estados adotem obrigatoriamente o princípio da solução pacífica das controvérsias.
Como é habitual para os russos, suas manifestações formais são apoiadas por substanciosos argumentos jurídicos que conferem legitimidade às ações, cumprindo com acordos e promessas entabuladas.
Ademais, inúmeras ações diplomáticas encetadas pela Federação Russa foram engendradas no bojo das reuniões do Conselho de Segurança da ONU, todavia, desconsideradas pelos países membros.
Tão logo iniciada a guerra, o Departamento de Defesa norte-americano determinou que um grupo de cientistas e técnicos aconselhassem os comandos militares nas áreas necessárias, provendo informação e opinião diversificada sobre vários problemas. Nesse contexto surge a contribuição de McNamara.
Ele serviu como Secretário de Defesa dos Estados Unidos de 1961 a 1968 durante as presidências de John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson, período em que teve um importante papel no aumento do envolvimento norte-americano na Guerra do Vietnã. McNamara foi o responsável por instituir a análise de sistemas na política pública, que se desenvolveu no que hoje é conhecido como análise política. Ele consolidou as funções de inteligência e logística do Departamento de Defesa em duas agências: a de Inteligência de Defesa e a de Logística de Defesa.
Portanto, antes de entrar na política, McNamara foi um dos veteranos da Segunda Guerra Mundial servindo como Secretário de Defesa.
Pode-se inferir do documentário que McNamara tinha o propósito de convencer Lyndon Johnson, por meio de seu relatório, a pôr um fim à guerra no Vietnã, o que certamente contrariou o presidente Johnson, o que se assemelha em gênero, número e grau à entrevista de Carlson face à postura do presidente Biden de aumentar as apostas no apoio à Ucrânia.
Deve-se ressaltar que a história é mestra em ensinar (historia magistra vitae) e as experiências advindas da derrota norte-americana na Guerra da Coréia e do Vietnã foram resumidas nas lições de McNamara: 1) Cause empatia no inimigo; 2) A racionalidade não nos salvará; 3) Existe algo além de si próprio; 4) Maximizar a eficiência; 5) A proporcionalidade deve ser uma diretriz da guerra; 6) Obtenha dados; 7) A crença e a visão costumam estar erradas; 8) Esteja preparado para rever seu raciocínio; 9) Para fazer o bem talvez seja preciso fazer o mal; 10) Nunca diga nunca; 11) Não se pode mudar a natureza humana.
Veja-se que a estrutura e a construção narrativa do documentário do diretor Errol Morris, de 2007, repete-se com a entrevista do analista político Tucker Carlson em 2024: os entrevistados respondem ao que queriam ser indagados e não necessariamente ao que lhes perguntam; abordaram a gamificação da guerra e o ímpeto beligerante dos Estados nacionais; o problema da diferença do conceito e aplicação da moralidade na guerra aos vencedores – que podem tudo –, e os perdedores, que serão julgados e condenados.
Ora, a abordagem dupla que se repete em ambos os casos é a névoa da guerra de Clausewitz, ou seja, da incerteza de ambos os lados das capacidades e planos do inimigos, do caos que advirá quando ordens são mal interpretadas, bem como da necessária racionalidade da guerra.
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Ademais, o documentário ressalta que a racionalidade evitou uma hecatombe nuclear entre as duas potências, o que pode ser também extraído da entrevista de Putin, no sentido de que é dirigida aos Estados Unidos uma severa advertência sobre os passos que estão dando e as consequências de sua participação nos conflitos atuais no Oriente Médio e na Ucrânia.
A entrevista de Putin com Carlson de fevereiro de 2024, durou mais de duas horas, foi publicada em 9 de fevereiro e na conversa Putin deu informações históricas detalhadas sobre a formação da Rússia desde a Rússia de Kiev até a criação de um estado único com capital em Moscou, bem como os pré-requisitos para o surgimento do nacionalismo no território da Ucrânia. Putin também respondeu às perguntas de Carlson sobre os EUA, a China, a OTAN, as explosões do Nord Stream, a libertação do jornalista americano Evan Gershkovich, acusado de espionagem na Rússia, e muitas outras.
Pode-se inferir da entrevista a pouca atenção e notória superficialidade representativa da sociedade americana com a parte histórica do conflito, bem como a pressa americana em resolver conflitos pela força, em comparação com a calma e a ampla fundamentação argumentativa, típica dos povos orientais, dos quais a Rússia também faz parte e herdou tais idiossincrasias.
Com efeito, cotejando as lições apontadas na época com seus 85 anos com base em suas palavras: “tentei aprender, tentei entender com o que aconteceu. Tirei lições e passei-as adiante”, as que mais se aplicam contra os Estados Unidos apenas revelam ao mundo a “quantas anda” o processo decisório de alto nível, na condução de uma guerra por procuração (proxy) e, mesmo perdendo e sacrificando vidas ucranianas, busca ainda novos atos terroristas dentro da Federação Russa, buscando prolongar e intensificar o conflito, transformando-o em uma guerra de guerrilha de longo prazo.
Como se vê, é possível aplicar essas lições aos erros americanos cometidos na Ucrânia, ao tentar jogar a Europa contra a Rússia por meio da OTAN, buscando além do habitual acerto estratégico advindo da Teoria do Rimland de Nicholas Spykman (1893-1943) – base da doutrina de segurança nacional pós-Segunda Guerra Mundial – o uso do “poder” econômico, colimando atingir parceiros russos como Irã, China e Arábia Saudita, levando a Europa ao caos e ao retrocesso socioeconômico.
Portanto, as lições extraídas de McNamara e deixadas para a história continuam sendo ignoradas pela alta política americana, que parece sucumbir aos interesses econômicos-militares.
Também é digna de nota a possibilidade de erro de cálculo do lado americano e por conseguinte da OTAN, que pode colocar o mundo em um “estado de alerta nuclear”, pois a continuidade do conflito da Ucrânia com ajuda implícita e explícita da OTAN pode significar atos cada vez mais violentos, com viés terrorista em solo russo, sob o verniz de uma “legítima resistência ucraniana”.
Por fim, a reflexão mais alarmante de McNamara e de Putin sobre a postura americana de guerra permanente com mão-de-obra alheia e em solo alheio, é a da não possibilidade de mudança da natureza humana, ou seja, da permanente realidade da guerra.
Em suma: nunca é tarde para os Estados Unidos reverem seus atos para o bem, o progresso e a paz da humanidade.
*Carlos Alexandre Klomfahs é advogado em direito internacional e pós-graduando em Direito Internacional dos Conflitos Armados, egresso do curso de Geopolítica da ECEME e Estratégia Marítima da EGN/FEMAR e consultor em Inteligência Corporativa.